Oct 18

Não Atravesse Paredes!

Esta história é fictícia e não é recomendada para menores de 16 anos.

O que eu mais gostava era de voar. Passar bem perto das copas das árvores, quase conseguindo tocar nas folhas. A sensação sempre foi muito boa.

Acontecia sempre que eu descobria que eu estava sonhando bem no meio do sonho. Muitas vezes, durante um pesadelo, as coisas que estavam acontecendo eram de certa forma tão bizarras, que me vinha a ideia de que eu só poderia estar sonhando. Quando isso acontecer, você tem a opção de tentar se auto despertar do sono, ou aproveitar o momento. Quando você se vê consciente dentro do sonho, você é capaz de fazer quase tudo.

Voar era uma opção óbvia, mas não é tão fácil quanto parece. Por mais que você esteja em forma de espírito, você ainda tem um certo peso e densidade – Precisa ir meio que no tranco. A técnica que eu desenvolvi consistia em começar a correr e, aos poucos, ir saltando e se elevando do chão. Cada salto fica mais longo e mais alto que o último. Depois de uma certa altura, fica mais fácil se manter no ar. Depois, é só aproveitar e voar por aí até o despertador te acordar.

Pode parecer bobeira, mas para uma criança de dez anos, conseguir controlar os sonhos dessa maneira era motivo de muito orgulho. Tanto é que comentei diversas vezes com minha irmã mais velha, que não pareceu acreditar totalmente no que eu estava dizendo. Pelo menos era a impressão que me dava.

Os anos se passaram até que ela veio me procurar para dizer que o seu marido lhe havia apresentado a um grupo que estudava e praticava a saída consciente do corpo. Ela me surpreendeu ao se lembrar das minhas aventuras aéreas e me aconselhou a procurar saber mais sobre o assunto.

Eu não levei muito a sério: “Eu hein?”.  Ignorei o assunto o quanto consegui, mas, volta e meia, minha irmã aparecia com uma brochura e me dizia que estava abrindo uma turma nova naquela semana. O curso iria acontecer próximo à minha casa e acabei me inscrevendo.

Bem-vindos aqui, bem-vindos ali, uma moça de cerca de trinta anos veio nos apresentar a ideia básica do curso. Primeiramente, ela fez questão de deixar claro que aquilo não se tratava de uma religião. “Que bom!”. Continuou assegurando que deveríamos acreditar em apenas o que quiséssemos. Disse que há alguns anos também tinha começado na posição que estamos agora antes de se candidatar a voluntária e começar a ajudar pessoas a sair do corpo.

As aulas eram realizadas duas vezes por semana e, durante os 90 minutos de extensão, aprendíamos algumas das teorias e fazíamos exercícios práticos. Geralmente coisas que nunca davam muito certo como, descobrir qual era o objeto que foi colocado dentro de uma caixa de sapatos, mas que nos dava a ideia de o que poderíamos fazer se progredíssemos o suficiente. Até que eu achava divertido e desafiador.

Eu estava levando o assunto a sério e era em casa, perto da hora de dormir, que eu tentava colocar em prática tudo aquilo que eu estava aprendendo nos cursos – em geral, eu me deitava de maneira mais confortável possível, fazia alguns exercícios de respiração e concentração esperando que o corpo, aos poucos, fosse se desconectando do corpo.

A sensação é gostosa. A gente tem a impressão de que o corpo está inflando, mas a grande dificuldade é que, quando o corpo começa a se desprender do corpo, você acaba não sabendo como dar o próximo passo. Seu rosto começa a coçar, você sente que está quase lá, mas o quase lá nunca chega.

Até que um dia, chegou.

Fui para cama, me frustrei mais uma vez com minhas tentativas, desisti e decidi dormir. Quando a manhã estava ali entre cinco e seis horas, eu despertei do meu sono. Todavia, eu me mantive imóvel. Percebi que aquela era uma situação perfeita – meu corpo estava completamente relaxado e meu espírito não havia se conectado completamente ao corpo.

Fechei novamente os olhos e logo consegui chegar em um estágio, que nunca havia chegado antes. Eu senti, primeiro, minhas pernas se elevarem como se fosse mais leve que o ar. Em seguida, foi a vez do meu tórax e braços. Senti meu espírito ancorado somente pela cabeça. Quando ela finalmente desconectou, tive a impressão de ouvir um velcro desgrudando dentro da minha cabeça. E agora?

Quando abri os olhos, eu voltei para o corpo imediatamente. Tentei novamente e tive o mesmo resultado. Eu precisava de uma estratégia diferente – “Vou rolar da cama”. Repeti os passos até o velcro, rolei para o lado, mas somente em espírito. Deu certo! Eu estava livre!

Vi de relance o meu corpo na cama, mas tratei de me afastar logo. Não queria correr o risco de me assustar e acabar acordando, colocando tudo a perder. Estava na minha primeira experiência fora do corpo e eu não via a hora de compartilhar para meus coleguinhas de turma. Bem… vamos dar uma volta e ver do que se trata.

Será que eu consigo atravessar a porta no melhor estilo Ghost? Estiquei o braço até a porta do meu carro e comecei a exercer pressão. Não é como se ela não tivesse lá. A porte ofereceu uma pequena resistência no começo, mas do mesmo jeito que eu me lembrava que acontecia na hora de voar, depois que rompi a primeira barreira da porta, o resto do corpo passou com extrema naturalidade.

Adorei! Tudo ali era legal. As cores eram levemente mais frias. Meus móveis estavam todos lá. Sim, eu sentia um leve desequilíbrio corporal, apesar do mesmo ter permanecido na minha cama. A gente leva um tempo para se acostumar com essa nova relação com o mundo exterior.

Eu havia tomado gosto pela coisa, uma parede atrás da outra. Não sabia mais onde estava. Eu já tinha atravessado cômodos que não era meus, provavelmente de um vizinho. Foi então que eu avistei mais alguém ali.

Seja quem ou o que fosse, estava de costas para mim. Demorei um tempo para entender o seu comportamento. Ele parecia excitado ou agitado. Estava virado para a parede e a atravessava até o outro cômodo e logo voltava. Por um segundo, me lembrou um glitch em um videogame em que os NPCs ficam atravessando objetos como se eles não tivessem lá.

Logo vi que ele não estava sozinho. Outro espírito com crise de ansiedade entrando e saindo através das paredes. E, mais um! O terceiro espírito estava, literalmente, se masturbando.

Definitivamente eu nunca recebi nenhuma informação sobre algazarras de espíritos nas minhas aulas. Será que estava correndo algum risco ficando ali?

Até onde eu conseguia ver, eles não pareciam muito amigáveis. Eu deveria me dar como satisfeito, fazer meia volta e encerrada a minha primeira experiência fora do corpo ou me arriscar, chegar mais perto e descobrir o que estava acontecendo dentro do quarto?

O que poderia acontecer? Uma coisa eu aprendi no curso, aqui fora tem vampiros. Mas, quando digo vampiro, não me refiro às criaturas mitológicas que tem vida eterna, desde que suguem sangue humano de vez em quando e fique longe da luz solar. Estes se alimentam sugando nossas energias. Muitas vezes, um espírito que foi um viciado em algo quando vivo, se torna um vampiro e buscam pessoas que tem o mesmo vício que ele para sugar sua energia e sentir um pouco do vício novamente.

Fui me aproximando bem devagar. Não sei se já haviam notado a minha presença. Se sim, pareciam não se importar. À medida que fui chegando mais perto, comecei a sentir uma vibração diferente. Um campo energético o algo assim. Parecia que eu estava entrando dentro de um vespeiro que acabou de ser sacudido. “Meu Deus, o que eu estou fazendo?”

Agora eu conseguia ver as criaturas com mais detalhes. Sim, eu acho que eles já foram humanos algum dia, mas seus espíritos foram tomando formas animalescas e bizarras de uma forma que eu comecei a entender de onde os pesadelos vem.

O quanto mais eu interagia energeticamente com o enxame de viciados, mais eu sentia a sua podridão. Se eu fosse definir estes seres como um homem eu definiria como uma pessoa que sempre foi trapaceada na vida e que aprendeu que, para sobreviver, deveria tirar proveito das outras pessoas também. Uma pessoa que nunca foi realmente amada, que logo se entregou para a futilidades da vida em busca em fugir da realidade. Estuprou e foi estuprado, bateu e foi espancado. Um condenado que viu todas as mazelas que esse mundo pode te fazer passar. Morreu e nem mesmo se deu conta disso.

Cheguei junto à parede. É agora, eu estava para entrar. Qualquer coisa, era só sair correndo como um loco.

Encostei a testa e forcei um pouco e entrei até o ombro. Não queria me expor demais. Meu Deus, quantos são?! Pareciam formigas em volta de um docinho que caiu da mesa na festa da noite passada. São muitos e eles não me deixavam enxergar o objeto de desejo.

Me permiti entrar por inteiro no quarto. Com tanto bicho louco se contorcendo, lambendo, se esfregando uns aos outros, foi um pouco difícil de saber que tipo de cômodo se tratava. Consegui visualizar partes de um sofá encostado na parede, mas ainda não consegui ver o que está no centro. Apenas um bolo de vampiros desformes que se exprimiam para tentar ganhar espaço em um suruba espiritual que eu nunca imaginei que iria participar. “Eu preciso ver!”

Fui me intrometendo quase que imitando seus comportamentos, sem olhar em seus olhos escuros. Por algum motivo, tinha a impressão de que isso poderia criar alguma conexão que me denunciasse. Já estava vendo algo. Tem uma pessoa deitada ali. Consegui ver partes do seu joelho e coxa. Um pouco mais, é uma mulher. Parecia estar pelada em uma pequena cama.

Girei um pouco em minha posição, abaixei um pouco até um hiato de seres que percebi haver e avancei mais uma camada. Me endireitei e finalmente pude ter uma visão um pouco mais clara – Não era uma mulher, mas sim, uma adolescente. Estava amarrada e amordaçada, apesar de que não parecia estar em condições de reagir. Eu jurava que ela estava fervendo em febre e em um tipo transe causado por drogas.

Alguns espíritos estavam tocando em mim naquele instante. Fiquei ali, completamente paralisado por algum instante absorvendo a situação e pensando no que estava acontecendo quando percebi algo estranho: Um vampiro me chamava atenção. Tirando o fato de ele também estava se masturbando, ele não se movia como os outros. Estava quase vendo o seu rosto, mas tinha uma porra de vampiro se contorcendo no meu campo de visão. Me inclinei para o lado e, quando estava quase chegando lá, o maldito se virou e saiu. Mas, para onde?

Ele foi para o fundo do quarto até um… ele foi até uma câmara em um tripé. É claro, a câmara não capta todos esses vampiros. Esse doente havia dopado aquela menina e estava fazendo um vídeo caseiro. Não era à toa que atraiu tantos vampiros!!!

Não me contive, desisti do meu disfarce e saí em direção do escroto. Cheguei mais perto e quase não acreditei – era o meu vizinho Jorge!

Naquele momento, de repente, eu não consegui me mexer. Eu estava me sentindo sufocado. Eu quebrei a sinergia energética da orgia e todos agora estavam me atacando.

Saí correndo pelo meu quarto e, quando me dei conta que havia voltado para o meu corpo, eu já estava no corredor do meu apartamento.

Que bom… tudo não passou de um maldito pesadelo!

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